O pio dos pássaros, a lentidão provocada pelo castigo do sol e o burburinho da marola na praia de areias claras exige esforço de imaginação para reconstruir o horror vivido por Khao Lak, no sul da Tailândia, há pouco menos de 12 anos. A orla da região foi das mais atingidas pelo tsunami de 2004 que abarcou 12 países no Oceano Índico, da Indonésia à Somália.
Ao todo, as águas do mar mataram 230 mil pessoas, destruíram 430 mil casas, danificaram 100 mil barcos de pesca e apagaram 3,5 mil quilômetros de rodovias. Quase dois milhões de pessoas ficaram desabrigadas. Só em Khao Lak desapareceram 100, dos antigos 143 hotéis e pousadas.
Hoje a cena do verão tailandês repete o cotidiano do passado logo antes da tragédia, com ondas de mais de 30 metros de altura. Famílias tomam banho de sol nos resorts, crianças brincam à beira da piscina e aposentados caminham na areia, fugindo do inverno europeu.
Os tsunamis em geral são provocados por terremotos no solo oceânico que movimentam grande massa de água e formam ondas, em todas as direções. As vagas são ligeiras, viajam a 885 km/h, e podem avançar mais de três quilômetros em terra firme. Em águas profundas são pouco perceptíveis. Ganham tamanho quando se chocam com o fundo mais raso das praias.
O tailandês, na foto abaixo, tem 42 anos e estava dormindo em Phuket, a 80 quilômetros de Khao Lak, quando o tsunami chegou. Acordou dentro da água. Teve sorte. A crosta continental de Phuket, menos íngreme, segura o peso das ondas. O tsunami se alastra com mais força em praias longas e rasas, como as de Khao Lak.
Nenhum membro da comunidade Moken que vive na baía de uma das ilhas Surin morreu no tsunami de 2004. Todos conseguiram fugir e acampar nas colinas, até a água baixar. A sabedoria dos ancestrais os ajudou a prever a catástrofe, eles sabiam que as ondas estavam chegando.
A tribo Moken é apelidada de “ciganos do mar” por sua característica nômade e essência livre. Viviam em barcos, no universo marítimo, sem terra ou religião. Foram perseguidos por piratas e caçados por comerciantes de escravos. Resistiram. Com o estreitamento das fronteiras e leis de imigração, terminaram obrigados a se assentar nas costas e ilhas da Tailândia, Myanmar e da Indonésia.
Vivem da pesca e da coleta de frutos e atualmente incrementam a renda vendendo artesanato para os visitantes. Os nativos enxergam melhor debaixo d´água do que a maioria das pessoas, pelo costume e acomodação do foco de visão. No arquipélago de Surin, as crianças vão à uma pequena escola e recebem educação tailandesa.
Com o estreitamento das fronteiras, a tribo nômade foi obrigada a se assentar na costa do Sudeste Asiático
As ilhas, a 60 quilômetros da costa de Andamán, foram estabelecidas como parque nacional marinho e, portanto, são bem preservadas. Não há estradas, hotéis e nem mesmo trilhas na mata. Apenas duas, das cinco ilhas, podem ser visitadas.
O tsunami do Oceano Índico foi provocado pelo quarto maior terremoto dos últimos 100 anos, 9,1 graus de intensidade. Chegou a alterar o balanço gravitacional do planeta.
Hoje Khao Lak não só tem rotas de fuga, como também mapas nas ruas para indicar a localização dos abrigos, em caso de uma nova ocorrência. O balneário estabeleceu um memorial e criou um museu para guardar a memória do acontecimento. Exibe vídeos chocantes com imagens de fuga e do início das inundações.
A localidade ainda vive a comoção da tragédia. Os coqueiros não oferecem apenas frutos. Dão suporte às homenagens aos que partiram muito cedo, em terras estranhas.
Sob a ótica da descoberta e das viagens, a Tailândia apresenta dois aspectos nitidamente marcados. O das maravilhas naturais, históricas e religiosas e o das multidões e exagerada exploração comercial. É preciso tempo, pesquisa e dedicação para encontrar o mais genuíno da nação.
Na mesma rota costeira, ao Sul do país, é possível vislumbrar praias belíssimas, sufocadas pela indústria do turismo, e também desfrutar de ilhas bem preservadas e sem urbanizar. Em poucos quilômetros de distância as diferenças são alarmantes e atingem até mesmo o comportamento dos locais. O esquema turístico torna os naturalmente aprazíveis e amistosos tailandeses em comerciantes impacientes e não raramente irritadiços ou mesmo agressivos.
A Tailândia recebe anualmente um número de estrangeiros equivalente à população de sua capital, cerca de 10 milhões de habitantes. É fácil alcançar o país – Bangkok é um hub aeroviário – há estrutura e conforto, mais gente falando inglês e menos risco. Isso faz com que lugares que viveram dias de beleza imaculada, na longínqua época do movimento hippie, possam ser comparados hoje a uma Disneyworld em mês de Julho, o pico do movimento no parque temático.
Exemplo disso é Maya Bay na considerada paradisíaca ilha de Ko Phi Phi. O turista padrão salta da capital direto para esse ponto e acredita estar saboreando o máximo da costa de Andamán. Usa seus “paus de selfie” e divide pouco mais de 150 metros de areia com praticamente outras mil almas ingênuas, ansiosas por um retrato e por mostrar onde estiveram ao regressar a casa. Dê uma olhada na foto abaixo e você vai enxergar Copacabana no verão ou o Farol da Barra, em Salvador, em janeiro. Triste.
Maya Bay, abarrotada de turistas internacionais, é exemplo da asfixiante indústria do turismo na Tailândia
Exagero? Não se você presenciar um guia local com microfone alardeando a fama do local desde que DiCaprio atuou ali para o filme “A praia”. Jamais combinaria com a paisagem de areias brancas, águas turquesa e monumentais paredões de rocha. Para incrementar o drama, quase uma centena de turistas ia atrás, entusiasmada com a fugaz importância cinematográfica do lugar.
O ápice da estupidez, na minha sincera opinião, foi encontrar um sujeito enchendo garrafinha de água mineral com areia da baía. “Vou mostrar para os amigos um pouquinho de Maya Bay”, deveria pensar, sem qualquer lampejo de consciência ambiental. A fama só contribuiu para poluir e estragar o – um dia intocado – cenário.
Outro exemplo é a estrutura muito bem montada em Bangkok com a finalidade de movimentar multidões em vans pelos arredores da capital. Os turistas passam horas no veículo entre três ou quatro atrações diferentes, shows com cobras, espetáculos de macacos ou a antinatural oportunidade de se aproximar de um par de tigres dopados. A saída é geralmente da área de Khao San Road, uma área turística de algumas quadras, onde todas as noites os bares tocam conhecidas e antigas canções internacionais para entreter os clientes.
O turismo sem dúvida traz o seu lado positivo: gera empregos, distribui renda e impulsiona o país, o que torna a Tailândia um destino completamente seguro. O que lastimo é o fato de se tornar ferramenta de aculturação de uma nação. Elefantes não nasceram para desenhar, crocodilos não foram criados para se apresentar como animais domésticos e minorias étnicas não existem para representações turísticas ou para pedir esmolas e gorjetas.
Ainda existem no Sudeste da Ásia, e na própria Tailândia, lugares muito interessantes, bem mais autênticos, e paisagens belíssimas a proporcionar experiências enriquecedoras. Posso garantir, após cinco meses desta expedição jornalística, cultural e de aventura – sendo dois só na Tailândia. Porém dá mais trabalho para descobrir e mesmo para chegar; exige mais flexibilidade e senso de adaptação, e, por vezes, surgem perrengues a enfrentar.
Na ilha maravilhosa que descrevi no post passado, acordei de madrugada com um camundongo correndo na cabeceira do meu colchão, sobre o estrado de bambu. Claro que não gosto disso, sou uma pessoa normal, ainda que com certo espírito aventureiro. Mas, faz parte da trajetória.
De qualquer maneira, se cabe aqui alguma sugestão, digo que se esforce, não opte rapidamente pela opção óbvia, comercial e mais fácil, ainda que você prefira o conforto e não seja um viajante de longo prazo. Garanto que vai compensar, e muito. Viajar é diferente de fazer turismo.
“Travel is like marriage.
The certain way to be wrong
is to think you control it”
John Steinbeck (1902 – 1968)
Quase certeza, tenho, de que encontrei o paraíso para recuperar minhas três costelas partidas. Decidi continuar a expedição, mesmo após o acidente de moto, há alguns dias. Porém, precisava de um intervalo para recuperação. Mudei o roteiro, o Norte da Tailândia exigiria mais esforço físico, deslocamentos de motocicleta e mudança de hospedagem a cada dois ou três dias. Teria um baixo aproveitamento na exploração da região montanhosa. Desci novamente ao Sul do país.
O paraíso é uma ilha muito tranquila e rústica, possivelmente uma das menos urbanizadas e exploradas da Tailândia. Não há lojas, hotéis de luxo, rodovias pavimentadas e tampouco carros. Por outro lado, existem macacos, muita mata nativa e uma comunidade local maravilhosa. Lagartixas gigantes, outros répteis e, eventualmente cobras, completam o cenário. É um habitat de pássaros raros e diferentes como o “hornbill”, de corpo preto e branco, penacho e proeminente bico amarelado. Lembra um tucano.
Lógico, a concepção do Nirvana varia conforme o perfil e a personalidade de cada pessoa. Há os que preferem vida simples e um estilo pé na areia e os que optam por mais conforto e sofisticação. Para mim está mais do que bom o bangalô de bambu, a rede na varanda, o banheiro com ducha manual de água fria e descarga de balde.
Mais que suficiente o meu bangalô de bambu sem ponto de energia e com descarga de balde
Ar condicionado (rs)? Não, não tem nem ventilador. A energia elétrica, de gerador a diesel, é fornecida por poucas horas, quando começa a escurecer. Claro que não há internet e a água vem de poços artesianos. Mas mesmo em março, o mês em que começa a esquentar para valer na Tailândia, a ilha fica razoavelmente fresca, à noite. Oferece brisa suave e cheira a sabonete de frutas ao entardecer.
Fiz um bom esforço para chegar, 35 horas de viagem. Um sacrifício, pelas minhas condições físicas, desde o extremo Norte do país até a costa Sul. Foram nove meios de transporte diferentes, a começar com um táxi compartilhado, chamado aqui de “sörngtäaou” (fala-se “sonteo’) e um trem, em segunda classe, sem cama.
Não conseguia cochilar, com todas as luzes do vagão acesas, o tempo todo. Por vezes o cotovelo do meu vizinho, um professor aposentado de 64 anos, cutucava minhas costelas sadias. Enquanto dormia agarrado à bolsa de corino marrom, o malaio pisava meu pé, incessantemente.
Saltei para o banco de trás e tentei bloquear a luz com os óculos escuros falsificados, sem muito sucesso. Tinha ainda que acomodar as escoriações do braço e dos joelhos, para que não tornassem a abrir. Minha mochila, agora bem magrinha, me acompanhava no compartimento superior. Viu-se livre de roupas, papéis, pequenos objetos, uma excelente jaqueta semi-impermeável e até de alguns medicamentos. Não podia seguir com muito peso, conforme recomendação médica.
Cedinho em Bangkok, peguei um trem urbano, uma linha de metrô, caminhei e embarquei em um ônibus de linha até uma das estações rodoviárias da capital. De lá foram mais 12 horas ensanduichado, dormindo à prestação, mais um táxi compartilhado e um barco lento.
Na ilha, os cajus maduros despencam dos galhos das árvores, o mar murmura em sua missão de cobrir e descobrir as rochas, a areia molhada é sedosa sob os pés e os caranguejos multicoloridos fogem desesperados ante a aproximação do viajante. A água do oceano é macia, quente e caudalosa. Salgada, torna-se fácil boiar. Não há muitos mosquitos e pernilongos.
Na primeira noite voltei dentro d´água para meu bangalô. Saí à tardinha, assisti ao maior sol da minha vida finalizar o dia mergulhando no mar, e retornei quase a nado, com a subida da maré. Claro, havia outro caminho pela mata que eu ainda não conhecia. Mas, quer algo mais fascinante do que chegar ao pouso com água até os ombros?
O toque de recolher no paraíso é às 22h, mas depois disso ainda dá para curtir a escuridão, na vegetação, ou apreciar no céu as estrelas. Não devo revelar o nome desse local sagrado. Não por egoísmo, com o maior prazer dividirei com amigos e pessoas queridas de destino à Tailândia. Porém, simplesmente tornar público uma ilha quase imaculada seria atentar contra a sua pureza. Por enquanto é ótimo recordar do mar que à noite resmungava à minha porta. Se o paraíso não for ali é logo dobrando a esquina, disso estou seguro.
A expedição De Mochila pela Ásia tem sido uma experiência surpreendente, intensa, profunda, bonita, interessante, mas também difícil. Fascinante, sempre. Tenho me alegrado bastante, sorrido muito e me emocionado. Sempre me divirto, porém, por vezes também sofro.
Como agora, com três costelas quebradas, escoriações nos joelhos, braços e mãos e certa perda de rumo. Sim, sofri um acidente de moto, me estrebuchei no asfalto, no centro da Tailândia.
A princípio achei que não era grave, o susto e o impacto me deixaram atordoados. Poderia até considerar bobo esse acidente, pelas condições em que o episódio ocorreu. Olha que já estava alugando e viajando de moto há quatro meses, sem qualquer problema.
A primeira falha foi da administração do parque histórico de Kamphoeng Phet, o qual visitava. Colocaram duas lombadas em sequência sem qualquer aviso, pintura ou sinalização. Baixas, mas muito compactas, daquelas bem duras, sabe?
Vinha com algum embalo e passei rápido pela primeira, sem ver. Os objetos assentados em cima da moto saltaram e, no instinto, tentei segurar. Aí foi o meu erro, me desequilibrei, derrapei e fui projetado ao solo.
A moto deslizou no asfalto e eu fui parar com o nariz encostado na segunda lombada, a 20 metros da primeira. Pela adrenalina do momento, parecia que não tinha me machucado muito. Levantei, sacudi a poeira, observei os machucados, ergui e acionei a moto e continuei.
A câmera fotográfica, antes pendurada a um lado do meu corpo, partira. O visor foi deslocado e as imagens apareciam completamente desfocadas. O equipamento, após chocar-se contra o solo, impactou e pressionou meus ossos.
Segui, porém avariado, bem menos concentrado. Ao finalizar o dia, parti para remédio contra a dor e tratamento das feridas, com álcool e pomada antibactericida. Por estar mais desgastado do que o normal, o dia seguinte passei trabalhando no computador e só saí à noite para acompanhar as festividades em homenagem a Buddha.
Quatro dias se passaram, suspendi a medicação e a dor continuava, agora se irradiando pelas costas. Acionei o seguro saúde e fui atendido num hospital de primeira linha, na cidade de Chiang Mai, ao Norte do país. Passei por exames iniciais, fiz uma radiografia e sentei numas 10 cadeiras diferentes até receber o diagnóstico.
O centro médico está acostumado com pacientes de outros países, tem inclusive um balcão para atendimento internacional, além de profissionais com nível de inglês acima da média. Enquanto esperava, conversei um pouco com um senhor que havia quebrado a perna esquerda, após voar das escadarias da sua pousada.
O mais cômico (ou seria triste) era o fato dele estar sendo acompanhado por uma pessoa exageradamente perfumada e com roupas de gosto duvidoso. Fiquei em dúvida se a criatura com as unhas dos pés tingidas de azul e uma expressão indefinida seria uma prostituta com paupérrima apresentação ou mesmo um travesti. Pode achar estranho, mas não consegui identificar com exatidão.
Na Tailândia é comum alguns homens, principalmente mais jovens, assumirem certos traços da personalidade se fantasiando de mulher. Vi diversos, trabalhando de vestido ou usando “maria-chiquinha” em lojas de conveniência.
A pancada foi forte. Foram danificadas as costelas 5,6 e 9. Não achei pouco, ainda que as fraturas possam ter sido incompletas, ou seja, não saíram do lugar. A dúvida era como continuar agora, para onde ir, o que fazer? Primeiro segui o rito médico e, após a sentença, retirei a medicação na farmácia, instalada no próprio hospital. Serviço eficiente, ao custo de US$115, cobertos pelo seguro viagem.
A câmera fotográfica, consertei antes de começar a tratar as costelas, numa assistência autorizada, por US$22, quase perfeita.
“Só não pode carregar muito peso”, orienta o médico. E dizer isso logo para um viajante de mochila, sedento por aventuras. Sem dúvida, esse é o momento mais difícil da expedição. Pode soar esquisito, mas sinto as costelas se moverem e estalarem dentro do tronco, principalmente quando deito ou me viro na cama.
Agora, remédios e algum repouso porque a medicação provoca sono. As fraturas, nervosismo e irritação. Dia seguinte visitei um templo. Um não, acho que seis ou sete. Preciso encontrar meu rumo, ainda dói quando respiro profundamente.
A surpresa estava logo após uma curva da estrada asfaltada que corta o Parque Nacional de Khao Yai, no nordeste da Tailândia. Pilotava minha motinho alugada, como costumeiramente faço para explorar melhor as regiões, sempre de olho na mata, à espreita da vida selvagem. O gigantesco elefante se alimentava da vegetação ao lado da pista e havia bloqueado o tráfego no local.
Por vezes os mamíferos descem da floresta em busca de outros tipos de pastagens e grama e acabam se expondo à civilização. Incomodado com o movimento, ameaçou avançar no carro mais próximo. O motorista do terceiro veículo da fila, apavorado, deu marcha ré por uns 100 metros. A grande maioria das pessoas é muito temerosa em relação a ambientes inóspitos, fenômenos naturais e a animais incomuns.
Entusiasmado, eu já havia parado no estreito acostamento, tinha descido da moto e registrava a cena. O elefante cruzou a estrada e se refugiou na vegetação. O tráfego voltou a fluir. Um carro passou observando, de vidros fechados. Fui atrás do bicho.
Adoro a vida selvagem, sempre um dos objetivos da expedição. É indescritível a sensação de caminhar por uma floresta e repentinamente avistar uma criatura que povoa o universo de filmes e histórias e está completamente longe do cotidiano urbano da maior parte de nós. Foi assim quando fiquei pertinho de ursos marrons e negros em parques do centro-norte dos Estados Unidos e do Alaska go here (saiba mais lendo sobre a expedição De Mochila pelas Américas em www.ikeweber.com).
Como observador da natureza, não queria deixar passar a oportunidade. Já havia perdido a pista do primeiro elefante do dia, avistado quando entrava no parque, de manhãzinha. O Parque Nacional é o mais antigo da Tailândia e um dos três maiores do país, com 2,1 mil quilômetros quadrados de extensão. Abriga flora exótica com duas mil espécies de plantas e fauna variada composta de 300 tipos de pássaros, 70 de mamíferos e 74 espécies de répteis e anfíbios.
Segui o elefante pela mata, vagarosamente. Procurei não fazer muito ruído, mas era difícil visto que não havia trilha e me enroscava na vegetação e em cipós. Por sorte ele não caminhou para longe, se estabeleceu perto da estrada, sempre comendo. Os elefantes devoram entre 150 e 200 kg de plantas, bambus e pequenos herbívoros diariamente.
Eu estava tremendamente satisfeito com a minha experiência junto aos elefantes em uma reserva natural no Camboja, há pouco menos de dois meses. Na ocasião pude alimentar, acariciar e dar banho nos animais, dentro de um rio com cascata ( http://fantastic-ideas.com/services/artwork-production leia essa história em http://migre.me/t3hMF) http://jenniferblyth.com/charles-ives/ .
Porém, esses mamíferos haviam sido trazidos de tribos e vilas, um dia tinham sido domesticados. Agora era diferente, o animal era completamente livre e selvagem, nunca conheceu corrente ou foi escravizado para passeios turísticos, trabalho comunitário ou apresentações circenses.
A magia explodia, a aventura estava viva e a adrenalina, presente. Segui afastando os galhos e contemplando o brutamonte, mas era difícil captar imagens, a folhagem dificultava o trabalho. Cheguei muito perto, não mais do que uns 15 metros de distância, estava no que considerei o limite da segurança.
Em janeiro do ano passado houve diversos ataques sequenciais de elefantes no parque, com a destruição de vários carros. Especialistas atribuíram à escassez de alimentos na floresta, ao aumento do número de veículos nas imediações e interior do parque e à maior agressividade dos machos durante o acasalamento.
O elefante de três metros de comprimento e entre três e quatro toneladas de peso parou num ponto onde não havia passagem, e aí me preocupei. Animais selvagens encurralados se tornam agressivos. Olhei em volta na tentativa de ficar atrás de uma árvore, mas nesse ponto não havia troncos suficientemente grandes e fortes para funcionar como barreira natural.
Eu queria fazer apenas uma imagem de frente para o paquiderme e deixaria o local. Não deu tempo. O elefante virou a cabeça, se voltou para mim, sacudiu as orelhas e barriu – esse é o som que eles produzem. Deu dois ou três passos fortes e ameaçou avançar. Se eu tivesse apontado a câmera fotográfica ele dispararia, pude enxergar a continuidade nos olhos do gigante. Cheguei a sentir o atropelamento.
Recuei sem voltar as costas, saltei numa ribanceira e corri para a estrada. Na fuga perdi a tampa da lente e tive pequenas escoriações na perna. O de menos. O elefante desceu para a pista, desta vez era ele quem me perseguia. Uma caminhonete de guarda parque já se aproximava.
Alcancei a moto, me virei e ainda consegui documentar o bicho seguindo na minha direção. Vinha sem correr, do contrário eu não teria saído ileso. Desta vez não esperei, ele me esmagaria se saísse em disparada. Senti a adrenalina percorrer o organismo ainda por algum tempo. Eu me sentia vivo, livre e contente.
Não consigo enxergar uma viagem pelo sudeste asiático sem pilotar uma motocicleta, de qualquer tipo ou cilindrada. Arrisco dizer que é fundamental rodar em duas rodas para ter alguma profundidade na exploração e mais intensidade na experiência. Foi assim para conhecer o Sul de Laos em um circuito de 10 dias e 700 km pela área rural, próspera em cultivo de café, banana e mandioca. Farta em cascatas, rios e quedas d´água.
Há vacas, porcos, cães e cabras na pista; densa vegetação de selva ao redor; minorias indígenas, em vilas com acessos secundários; mulheres caminhando com cestos às costas. A colheita alternativa de frutas e as peças em palha e metal são vendidas à beira do caminho. Meninas varrem as portas das casas de madeira; crianças acenam da saída da escola; garotos com não muito mais do que oito anos de idade pilotam “scooters” pela rodovia principal.
A infância é livre. Caminha sozinha, pelada e descalça. Ou corre de bicicleta. Da porta do meu bangalô contemplo búfalos tomando banho de rio.
O Laos é um país que abriu suas fronteiras recentemente aos estrangeiros. A União Europeia restabeleceu relações comerciais com o país comunista há uma década, mas a nação continua entre as 20 mais pobres do planeta. O capital estrangeiro vinha ingressando, assim como os turistas internacionais, até 2008. Avançavam a construção de hidrelétricas e a exploração de cobre e ouro.
A crise hipotecária norte americana afetou o país, os recursos tomaram outros rumos, enquanto o preço do cobre despencava. Sobrou o oportunismo chinês para se estabelecer junto à melhoria da infraestrutura de transporte do país. Continua como grande produtor de energia, fornecendo eletricidade para os vizinhos Tailândia, Vietnam e China. A moeda do país é o kip na proporção de oito mil para um dólar.
O Laos é uma República Socialista de partido único, os comunistas chegaram ao poder em 1975, após o fim da monarquia e uma guerra civil. O governo proibiu a prática do budismo, o que foi revertido nos anos 90, com certas modificações.
Muitos homens experimentam a vida monástica temporariamente, por alguns anos. Os jovens não são considerados adultos antes de iniciarem sua etapa espiritual. E ainda segue sendo um tabu o ato de tocar na cabeça das pessoas, principalmente nas das crianças.
A população reduzida e a geografia montanhosa permitem que o Laos seja um dos países com o ambiente mais preservado da região, ainda que o corte e queima de madeira sejam ameaças atuais. Percebi isso rapidamente, ao rodear selvas abundantes, muito mais densas do que no já devastado Camboja (veja post sobre reserva de elefantes).
A pobreza, presente, é parte natural do cotidiano. Fui convidado a guardar minha motinho no que seria um depósito da pensão no vilarejo de Tad Lo, às margens do rio. Empurrei a bichinha para dentro e descobri que o espaço era a cozinha. Quanto a isso, nenhuma surpresa, apesar do ambiente degradado e sujo.
O impacto mesmo foi ver um porquinho preto se fartando de restos de comida, com meio corpo dentro da panela, largada no chão. Outro, maior, circulava à procura de sobras. Logo acima, esquecida sobre um balcão, descansava a bandeja com cenoura cortada e alfaces. Possível salada de algum cliente.
Aproveitei a força das cachoeiras de Tad Lao e fiz uma limpeza minuciosa em todas minhas roupas, objetos e equipamentos. Segurei as mochilas e o saco de dormir debaixo da correnteza para afogar ainda algum possível percevejo. Sofri de três ataques severos, espaçados, ao longo desta expedição.
Esse trajeto foi verdadeiro “easy rider”, seguir sem programação ou agenda definida. Descobrir e desvendar, livre de compromisso. Visitar comunidades onde as mulheres fumam grossos cigarros enrolados em folhas de bananeira e garças partem em revoada no meio das árvores. Parando a fim de interagir e saindo com um mamão enorme de presente.
No caminho, vi um menino sem olhos. Ele nasceu assim, tadinho. Eu estava registrando o entardecer quando a mulher me chamou para tirar fotografia. Apontou para a outra, com a criança no colo. Fiz a foto e só depois vi o rosto. Triste. Não terá como enxergar as belezas de Laos.
São inúmeras as belezas naturais de Laos
As tentativas de trapaças e o superfaturamento, principalmente de serviços, estão sempre presentes nos países do sudeste asiático. Após 30 dias no Camboja, parti rumo ao Laos, o terceiro país da expedição De Mochila pela Ásia.
De Tsung Treng, comprei passagem até a maior das ilhas do Mekong, ao sul de Laos, uma região de grande arquipélago fluvial. A combinação de transporte para chegar a esse tipo de lugar é muitas vezes complexo, há deslocamentos por terra e por água e mudanças de veículos impossíveis de serem entendidas por um estrangeiro.
Paguei US$15 para sair do povoado Cambojano e ser entregue em Do Khong, do outro lado do rio, um preço normal para os padrões locais. Como sempre, optei pelo lugar mais remoto, mais distante, menos frequentado ou visitado.
Do primeiro veículo, surpreendentemente novinho, me fizeram descer e entrar numa van velha, apenas com viajantes locais. Normal, faz parte da combinação de transporte que só eles conseguem compreender.
Na fronteira, cruzei os dedos. Meu visto estava vencido e tinha receio de ser punido de forma financeiramente mais severa do que o normal. Por sorte paguei apenas US$4 dólares de multa pelo dia extra. Outros US$3 todos os estrangeiros pagavam pelo selo de saída, uma taxa que ninguém sabia se era legal ou apenas uma “propina oficial”. Na aduana laosiana, o preço correto pelo visto, US$30, mais US$2 pelo selo do país.
De volta à van, o motorista dirige mais uns cinco ou seis quilômetros e acena para eu descer. Disse que eu deveria seguir de tuk-tuk, aquele triciclo motorizado com cabine para transporte de passageiros. Já desci desconfiado. Ainda haveria um barco para eu tomar e o meu bilhete – apenas um pedaço de papel de outro país – me dava direto a chegar ao destino final.
O motorista da van e o do riquixá negociaram por algum tempo e o transporte foi quitado. Vi o laosiano reclamar e pedir mais dinheiro porque seria longe o ponto onde teria que me deixar. O valor extra, que não me parecia ser assim tão extraordinário, foi entregue.
Até o momento, quase dois meses e meio de viagem, não havia embarcado em qualquer tuk-tuk. Sempre me desloquei a pé ou por conta, de bicicleta e de moto, algumas poucas vezes de ônibus ou de moto táxi. Os tuk-tuks são geralmente mais caros e, em determinados centros, tem péssima fama.
Alguns quilômetros adiante o motorista para e desliga a motocicleta. Diz que a viagem estava paga apenas até aquele ponto e que eu deveria seguir de táxi dali por diante. Na hora, não entendi. Ele repetiu que teria que pagar mais US$3 se fosse continuar com ele e outros US$6 por um barco para atravessar o rio. Eu estava surpreso. Questionei. Ele reafirmou, com a moto desligada.
Não acreditei, argumentei, ele insistiu e ficamos assim algum tempo. Mostrei o tíquete pago, ele reclamou dos cambojanos e confirmou que só seguiria por um valor extra. Eu estava estupefato, havia pagado US$15 e o bilhete comprovava, mas como argumentar, se não tratei com aquele sujeito, já havia cruzado a fronteira e estava em um outro país?
Ainda tentava entender se a pilantragem era do homem do triciclo ou se o esquema de transporte do Camboja havia falhado. Levantei e, firme, garanti que não pagaria nada mais por aquela viagem. Na hora não pensava em qualquer ato de força, estava apenas imaginando se teria que saltar e pegar uma carona, ou caminhar.
Não fazia ideia de onde estava ou se havia logo um rio para cruzar. Acabara de ingressar numa terra desconhecida. O fato é que não daria dinheiro para aquele motorista e deixei isso bem claro.
O motorista se intimidou e retrocedeu. Disse que estávamos a mais de 10 km de distância, ligou a moto e seguimos viagem. Ainda não acreditava na malandragem que ele havia tentado.
Um quilômetro adiante reduziu a marcha e, acenando com a cabeça e sorrindo, disse: “Ok, então mais dois dólares, certo?”. Reafirmei, ainda mais forte, minha posição. O veículo prosseguiu e eu não fazia ideia se rodávamos rumo ao destino certo ou o que tramava aquele estafador.
Cruzamos uma ponte e percebi que havia uma alternativa de caminho, sem barco para cruzar o rio. Pelas placas acompanhei a chegada ao lugar imaginado, o sujeito me deixou certinho no centro da comunidade fluvial, sem a menor demonstração de vergonha, desculpas ou arrependimento.
Finalmente chegava ao Laos, onde os arrozais são mais verdes e o Rio Mekong escorre em coloração turquesa.
Hoje existem apenas 30% da floresta nativa do Camboja. O desmatamento foi provocado pela exploração de madeira e mau uso do solo pelos fazendeiros. Há seis anos, o país tinha cinco centenas de elefantes, entre domesticados e livres. Agora é possível numerar cada indivíduo: são apenas 116 selvagens e 48 domesticados. Muitos desapareceram com a redução da mata, alguns foram levados ao vizinho Vietnam e, outros, forçados a trabalhar e depois mortos na Guerra Civil de Polpot, nos anos 70.
Tive a oportunidade de circular pelas áreas agrícolas e caminhar pela borda da floresta. Melhor, pude contemplar cinco elefantes abrigados numa reserva natural de 200 hectares perto de Sen Monorom, no nordeste do país. O espaço é parte de um projeto de conservação da vegetação nativa e preservação dos animais.
A reserva tem 200 hectares e a finalidade de conservar a floresta e manter um habitat adequado para os animais
A experiência é única e fascinante. Caminhei com os bichos, alimentei-os com bananas, entregues na tromba ou direto na boca, e entrei no rio com pequenas quedas d´água para lavar o dorso enrugado e a pele grossa dos gigantescos mamíferos. A limpeza ajuda a remover bactérias e previne infecções. Nada de escalar os elefantes, montar é extremamente proibido porque desgasta e estressa os animais. Foi uma experiência autêntica, longe de circos e livres de shows.
Os indivíduos que vivem na reserva são fêmeas e foram comprados na região ao preço médio de US$30 mil. Moon tem entre 35 e 40 anos e furo em uma das orelhas porque trabalhava arrastando cargas de madeira na vila de Oriang.
Na reserva, os elefantes fazem o que tem vontade de fazer, além de comer o dia todo, bambus e plantas nativas. Se não querem ser banhados, não entram no rio e se preferem ir embora, apenas se afastam. Os “mahouts”, responsáveis por guiar e tratar dos animais, garantem a segurança, mas não forçam os bichos.
Cada um deles pesa entre três e quatro toneladas e come o equivalente a 200 kg por dia. Se estiverem livres, em cenário natural, podem viver mais de 100 anos. Alguns ainda trabalham nas vilas indígenas, ajudando na colheita e no transporte de madeira. Os mamíferos asiáticos são menores do que as espécies africanas.
Existem cinco projetos voltados ao abrigo e cuidado de elefantes na região. Muito difícil escolher o mais adequado, há uma guerra ética e comercial entre eles. Todos se intitulam Ongs sem finalidade de lucro e com o propósito de apoiar as comunidades indígenas Bunong.
A vida é pobre e simples nas vilas. As famílias se formam cedo e dão origem há vários filhos, muitos privados de educação. A população cresceu e a comida diminuiu. Todos descem das montanhas com os cestos às costas para vender produtos rurais no mercado do povoado. Vivem com pouca ou nenhuma assistência médica, buscam a cura e a magia na floresta. Enfrentam a malária que atinge em torno de 40 mil pessoas por ano no país.
Todos os programas para abrigo e cuidado dos elefantes afirmam que apoiam as comunidades indígenas da região
A reserva que visitei deve ficar intacta ao menos pelos próximos 30 anos, tempo do contrato assinado entre o governo, a Ong e a comunidade étnica. É uma esperança porque em 2014 o Camboja perdeu uma área de floresta quatro vezes maior do que em 2001, segundo levantamento do World Resources Institute, um centro de pesquisas mundial, com sede em Washington. Uma das causas é a indústria de borracha que se desenvolve com força na região do rio Mekong.
Os antigos dizem que se algo errado está para acontecer na comunidade, o elefante é o primeiro a saber.
O despertar da comunidade na ilha de Ko Phdao, às 5h30, parecia uma batalha épica: motores, berros, pisadas fortes no estrado de madeira, risadas e choros. Parti após ducha de balde, noodles morno com peixe frito e café cambojano.
O dia prometia, mais do que eu poderia imaginar. À porta da casa me esperava o guia local para me conduzir pelas tramas da ilha, iria me acompanhar montado numa scooter. O trajeto da segunda pedalada rasgou Ko Phdao ao meio, por 45 km. Desta vez com terreno pesado, areião, e vários trechos de difícil transposição, até para o nativo motorizado.
Na metade do caminho desconectei o freio traseiro da bicicleta que enroscava no pneu. Apesar de ter escolhido a melhor mountain bike que encontrei, estava longe de ser o equipamento mais adequado para aquelas condições e terreno.
Às nove da manhã o sol já castigava forte, a mim e à paisagem ressequida. Com apenas uma e meia garrafinha, tive que racionar água no percurso. Com a boca em estado desértico, só consegui engolir os ovos cozidos que carregava para o almoço. O tijolo de arroz, embrulhado em folha de bananeira, doei para a família do guia. Nunca desejei tanto uma jarra de suco de laranja natural, produto raro e caro aqui no Camboja.
O rio apareceu apenas ao final deste trecho e, com ele, o mergulho, o relaxamento e as cãibras. Sedento, cansado e enfraquecido, me despedi do guia, atravessei o rio novamente, deixei a comunidade e atingi uma vila paupérrima quando já entrava à tarde. Fora da comunidade assistida, as condições pioraram bastante.
A cambojana queria 10 dólares para me abrigar na casa e outros três para jantar. Bem caro para um lugar desprovido de saneamento básico e de qualquer noção de higiene e limpeza, sem água na casinha do banheiro, instalada junto ao chiqueiro, e espaço para dormir restrito ao piso duro de tábuas. Uma fornalha, levitando sobre o lixo e a terra suja.
Isolado num trecho da estrada de chão e exausto, negociei. A moça dizia quatro dólares e escrevia 10 no caderno rasurado. Após não sei qual raciocínio, ofereceu a casa por cinco dólares, sem comida. Aceitei e estiquei as pernas, quase travadas pelo esforço da jornada.
Fui me restabelecendo aos poucos, ingerindo líquido e me refrescando no Mekong, provavelmente poluído pela comunidade ribeirinha. Era hora de encontrar comida, mas o cheiro de podridão, alternado com o da choça dos porcos, inibia o apetite. Num casebre-mercadinho, consegui latas pequenas de sardinhas e leite em caixinha. Garanti o jantar e o café da manhã seguinte.
Esse é um ambiente muito mais difícil do que qualquer acampamento em áreas hostis ou expedição na selva, porque ao contrário de um cenário natural, há sujeira por toda parte, dejetos acumulados e risco de contaminação.
Apaguei.
Dia seguinte, repeti a refeição anterior e peguei a estrada de terra sob o sol inclemente. Mal durei três quilômetros e precisei parar, estava fraco e enjoado. Invadi um pedaço de sombra de uma meia casinha abandonada e me estendi para relaxar.
Esticado nos destroços do que um dia fora uma construção de madeira, comecei a passar muito mal. Achei que não poderia mais prosseguir, no entanto não havia ninguém para me ajudar. Vomitei o pouco alimento que havia no meu organismo. Não tinha conferido a data de validade na lata de sardinha, seria isso? Ou, muito provavelmente, insolação.
Recobrei o ânimo e, para reduzir o peso, decidi esvaziar a mochila. Abandonei ali mesmo todas as roupas, era uma questão de sobrevivência. Mantive apenas o essencial na mochila: kit de conserto da bike; câmera fotográfica; água; protetor solar; dinheiro e documentos, basicamente.
Venci a pista de terra e cai na estrada asfaltada. O trecho mais insano apenas começara. O sol pegava a cabeça, surrava as costas, chicoteava as pernas. As escassas sombras eu aproveitava ao máximo, fazendo paradas a cada meia hora, em média. Fervia a pista à sensação térmica superior aos 40 C.
Foram vencidos 65 km nessas condições. Ao entardecer me aproximava do ponto de chegada. Por azar, ou escuridão, parei um pouco antes, na entrada do povoado. Encontrei uma boa pensão, mas nenhum lugar razoavelmente decente para me alimentar.
Após dois dias apenas beliscando, sem que nada tivesse parado no estômago, estava bloqueado para comer em condições precárias. Havia um karaokê que, no Camboja, tem característica de casa noturna e oferta de acompanhantes. Devagarzinho ia descendo uma sopa de noodles, até a chegada do gerente do estabelecimento.
Com algum nível de inglês, muita gentileza e avidez para os negócios, atrapalhava minha tentativa de refeição, fazendo perguntas sucessivas e indicando belas meninas cambojanas, com idades que estimei entre 14 e 20 anos.
Já na hospedaria, descansei por 12 horas. Encarei um peixe frito no mercado caótico e procurei uma van para regressar com a bicicleta. No retorno, cochilei um pouco. Sonhava com bifes suculentos e queijo.
Quando retornar ao Brasil, acredito que vou sentir falta de ouvir os cumprimentos e acenos das crianças por onde passo, de manhã até à noite. Não são cumprimentos obrigatórios, os garotos ficam excitadíssimos, principalmente quando respondo de imediato.
Antes mesmo de identificar o ponto da gritaria escuto os “hellos” calorosos. Logo aparecem meninos e meninas de dois, três, quatro ou cinco anos esticando a mãozinha e entregando sorrisos, desde bocas banguelas ou já cariadas.
As melhores formas de interagir com uma comunidade local são a pé, adentrando as profundezas dos povoados; de caiaque, remando até as vilas flutuantes; ou então circulando com motocicleta de baixa cilindrada. Desta vez optei pela bicicleta, outra estupenda forma de interação e de transporte.
Faria uma rota de 150 km ao longo do Rio Mekong, um dos maiores do mundo e o mais importante da região, responsável pelo sustento de milhões de pessoas. O Mekong nasce no Tibet corre pela China, forma a fronteira entre Myanmar e Laos, passa pela Tailândia, Camboja até compor um delta de terras férteis no Vietnam.
O primeiro dia de pedalada foi magnífico, os golfinhos surgem perto dos botes à beira do caminho. São da espécie Irrawaddy, seriamente ameaçada de extinção. Estima-se que haja apenas 80 indivíduos vivendo nessa região. Outro peixe importante é o “trey riel” que até deu o nome à moeda do país, o riel.
Cruzei o rio num barco que carregava de tudo e me alojei em uma das quatro vilas da ilha de Ko Phdao. Duas das comunidades – apoiadas por uma Organização Não-Governamental (ONG) da região – passam por um fabuloso programa de desenvolvimento sustentável. Algumas famílias, em sistema de rodízio, acolhem os viajantes e fornecem alimentação. Com orientação, educação e esforço, afugentam a pobreza.
Neste ponto do Mekong a correnteza é extremamente forte, a água é limpa e os mergulhos, essenciais. Com a chegada da noite, acomodei-me provisoriamente por alguns momentos em meu colchão fino, sobre o piso de madeira, para ver quais seriam os costumes e regras da casa. De pronto uma senhora instalou um ventilador em frente aos meus pés. Em que hotel você já recebeu esse tipo de serviço?
Uma segunda mulher descansou uma toalha cor de rosa em frente ao meu cantinho, deitou diversos pratos e ofereceu o jantar. Havia porco com cebola, legumes apimentados, uma tigela cheia de arroz e vários pedaços de abacaxi. Comi, observado pelas senhoras e por dois meninos. Tudo muito limpinho, até com guardanapos.
As instalações indicavam quarto de banho, com caneca plástica, separado do sanitário. Não havia luz elétrica, a pouca energia era fornecida por carga de bateria. Um pequeno altar budista, comum em todas as casas desta parte do mundo, completava o ambiente.
Ensinei alongamento para as crianças e interagi com a família à base de mímica e inglês básico, estilo início do Ensino Fundamental. No ano passado, apenas 30 pessoas, de todo o mundo, passaram por aqui, segundo os registros domésticos.
Os búfalos são usados na lavoura e há criação de pequenos animais para abate
As galinhas para consumo e comércio, o marido trouxe amarradas numa cesta sobre a motinho. Obedecendo ao hábito rural tentei dormir cedo, pelas 21h. O gatinho se instalou junto à minha cabeça para ficar até o amanhecer. Respirei o aroma de madeira queimando e contemplei a noite.
O céu que cobre Ko Phdao tem mais estrelas.
(Continua ainda esta semana, desde que haja boa conexão de internet)